domingo, 12 de junho de 2011

Postagem 28

Parques públicos e controle social
Prof. Antonio Carlos Sarti
Curso de Bacharelado em Turismo, Faculdade de Gestão e Negócios,
Universidade Metodista de Piracicaba.
Filipe Antonio Sarti
Bacharelando em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
Profª. Drª. Elisabete Stradiotto Siqueira
Curso de Pós-graduação em Administração, Faculdade de Gestão e Negócios
Universidade Metodista de Piracicaba
RESUMO
Dentre as funções da cidade moderna, a do lazer exige a abertura de espaços livres, com acesso
público, tais como os parques, fruto direto do processo de urbanização. Projetados como objetos
urbanos, obedecem à concepção de salubrismo, à afirmação do costume de ver e ser visto no espaço
público, à necessidade de afirmação do poder, à valorização de um discurso estético e à função de
exercer o controle social. O modelo criado a partir da Inglaterra do século XIX, consagra-se com o
Central Park, em New York, nos EUA, e se dissemina durante o século XX, com influência em
cidades médias do interior de São Paulo, na atualidade. O artigo procura estabelecer uma relação
entre o método genealógico de Foucault e o processo civilizador de Elias, tendo como foco o uso
que a sociedade industrial faz do objeto urbano ‘parque’.
PALAVRAS-CHAVE
Parques públicos, salubrismo, urbanismo, controle social, lazer.
ABSTRACT
Among the functions of the modern city, the leisure is the one which requires the installation of free
spaces, with public access, such as parks directly resultant of the urbanization process. Projected as
urban objects, it obeys to the salubrism conception, to the affirmation of the custom of seeing and
being seen in a public space, to the necessity of power affirmation, to the valorization of an
aesthetical discourse and to the function of performing population control. The English Model Park
created in the 19th century is consecrated by the New York Central Park, in the USA, and
disseminates itself during the 20th century, with influence in medium cities in the Sao Paulo State
interior, nowadays. The article searches to establish a relation between the genealogical method of
Foucault and the civilizatory process of Elias, focusing the use that the industrial society makes of
the urban object ‘park’.
KEYWORDS
Public parks, salubrism, urbanism, social control, leisure.
INTRODUÇÃO
As práticas de higienização do ambiente surgidas no século XIX para equacionar o problema
da saúde pública, principalmente a partir da população pobre, mais numerosa, foram enfeixadas na
concepção de salubrismo, repercutindo tanto no ambiente interno da habitação ou seja, no modo
controlado e confortável de viver no espaço privado, como no meio ambiente, entendido como
extensão da habitação ou seja, o espaço público. Com a Carta de Atenas idealizando a cidade com
as funções da habitação, do trabalho e da recreação, tendo a circulação como articuladora, consagra2
se o espaço externo, higienizado e limpo, como extensão do interno, potencializando relações. O
parque público, como categoria de espaço livre de uso público, vai ganhar em importância não
apenas pelo que representa como ganho de forma de conforto e qualidade ambiental, mas também
como uma tentativa de exercer progressivo controle sobre o comportamento e emoções da
população.
Passa a integrar uma categoria de análise da paisagem urbana e se constitui num campo
especializado de ação profissional, encetando propostas de padronização à revelia da história da
urbanização e da diversidade cultural do nosso país.
Erguido sobre a tradição da praça pública ancestral, o parque urbano da sociedade industrial
será planejado para cumprir sua função utilitarista de revigoração da força de trabalho através da
recreação, com práticas físicas e mentais, social e culturalmente estabelecidas. A partir da
construção do Central Park, em New York (EUA), implanta-se um marco referencial que se afirma
durante o século XX e que perpetua um modelo seguido por outras culturas, inclusive em Rio Claro,
no interior do Estado de São Paulo.
É inconteste a importância que vêm assumindo os espaços livres – verdes e azuis – no
contexto das cidades modernas, atendendo aos pressupostos da cidade ideal. A modernidade está
impondo parâmetros diferentes para os quais é preciso buscar um entendimento que extrapole a
compreensão de que possam ser resultado natural do atual estágio de desenvolvimento social,
cultural, tecnológico, comportamental, segundo os valores do que seja “civilizado” no mundo
ocidental. Essa busca de referenciais para a análise permite identificar na sociologia configuracional
e no processo civilizador de Elias, assim como na abordagem genealógica de Foucault,
apontamentos e contribuições esclarecedoras do longo processo de formação do objeto ‘parque’ e
dos usos – explícitos e implícitos - que dele estamos fazendo enquanto equipamento projetado para
a vida urbana, o que pode estimular percepções derivadas de outras referências.
A partir das proposições de Foucault, quando busca explicar a genealogia do sujeito
moderno, é possível estabelecer um paralelo com o pensamento de Elias e o processo civilizador
que, neste caso, ao se colocar em foco a função urbana dada ao parque enquanto modalidade de
espaço público, expõe a intencionalidade explícita de oferecer mais um componente da maquinaria
de conforto ao mesmo tempo em que, como contrapartida, procura exercer o controle sobre as
emoções no corpo social, como intencionalidade implícita. É importante ressaltar que Foucault não
faz uma pesquisa sistêmica, ou seja, não é através da ideologia e da consciência que ele analisa o
controle dos indivíduos. São as práticas sociais, em suas redes de saber-poder, que ele enfoca: a
genealogia consiste em revelar o nível pré-conceitual que se configura nestas práticas, uma densa
rede de relações que se estende pela trama histórica. Foucault enfatiza sempre que essas estratégias
não têm um sujeito, um estrategista, quer dizer, as estratégias surgem a partir de um dispositivo
histórico, e, como tal, constituem-se a partir da rede de relações de força entre os saberes e os
poderes do corpo social. “O esforço de Foucault, como genealogista, é permanecer o máximo
possível na superfície das coisas, para evitar recorrer a significações ideais, tipos gerais ou
essências” (Dreyfus&Rabinow, 1995).
Para Elias (1993), o processo civilizador se dá ao longo de muito tempo. É resultado de
inúmeras gerações apropriando-se de suas características genéticas e experiências culturais,
definindo comportamentos, poder e o habitus. Ao criticar o conceito de civilização e cultura,
explicita que os comportamentos usuais, padronizados, habituais são tomados como características
do humano, finais e acabados e, assim, camuflam a constituição histórica e negligenciam o longo
processo subjacente. Os comportamentos socialmente aceitáveis assim como os sentimentos acerca
desses comportamentos, são processos de longa duração. O poder não se localiza permanentemente
num único grupo social, sendo distribuído de acordo com a dinâmica das posições desses grupos, o
que decorre que as figurações são historicamente produzidas. A espécie humana é a articulação eu,
nós e eles concomitantemente, o hominis aperti, que permite avançar para as análises da evolução
3
do objeto ‘parque’ e dos usos nele previstos, projetados, planejados ou até mesmo aqueles que
parecem sair da mais espontânea reação ao ambiente criado com a utilização de outras formas de
vida (plantas, animais, fungos, insetos) como processo do entrelaçamento de uma complexa rede de
relacionamentos que carrega em seu desenvolvimento um forte componente não-planejado, atuando
sobre a estruturação das relações sociais.
A ADMINISTRAÇÃO DO ESPAÇO DA CIDADE COMO UMA TECNOLOGIA DE
MAPEAMENTO DA VIDA SOCIAL
O surgimento das Ciências Sociais e Humanas pode estar vinculado historicamente ao
desenvolvimento de um tipo de racionalidade administrativa que caracteriza a política das
sociedades modernas. Foucault considera que esse campo de saber administrativo começou a se
formar com o Renascimento, na mesma época em que Maquiavel escreveu O Príncipe. Na opinião
de Foucault, esse saber, voltado para a prática política, consiste em um ponto de ruptura no
pensamento político tradicional, que defendia a idéia de que o governo dos homens deveria servir a
um objetivo superior, espelhar o governo de Deus sobre a natureza; esse pensamento tem como seus
principais representantes Aristóteles e São Tomás, e era calcado sobre considerações metafísicas.
Maquiavel foi, talvez, o primeiro a considerar a política como um jogo de estratégias, sem
finalidades ontotéicas e orientada exclusivamente para a manutenção e o aumento do poder do
príncipe. Mas, para Foucault, o pensamento político moderno só foi inaugurado de fato nos autores
de manuais políticos e técnicos dessa mesma época, na teoria da Raison d’État, que considerava o
Estado como um fim em si mesmo, desvinculado de uma ordem ética mais abrangente e do destino
individual dos príncipes. A esses autores interessava exclusivamente a aplicação de programas
práticos de controle e disciplina dos indivíduos, utilizando as correntes tradicionais do pensamento
político para mascarar essas táticas. Foucault aponta para passagens pouco estudadas na obra de
Montesquieu, em O Espírito das Leis, como um exemplo dessa nova forma de racionalidade
administrativa orientada para a prática: ao contrário do pensamento tradicional, que buscava
estabelecer uma teoria geral do Estado, para esse saber prático-administrativo, o que se buscava era
definir a diferença, ou seja, eram as particularidades de cada Estado que deveriam ser medidas,
calculadas e somadas com eficiência. Para a administração era preciso um saber que mapeasse e
detalhasse os recursos do Estado, sua população, seus recursos, seus problemas, e medi-los não em
termos de virtudes, mas de força. Para Foucault, foi nesse momento em que a política transformouse
em bio-poder, quando os teóricos da Raison d’État colocaram a população como riqueza e suas
habilidades e competências como medida para a força de um Estado, e assim, cada indivíduo como
matéria-prima a ser trabalhada, aprimorada e domesticada para servir como potencialidade ao
Estado. As ciências sociais e humanas do século XIX têm aí seus primórdios, no uso de métodos
empíricos e investigativos a serviço dessa racionalidade política de mensuração e mapeamento da
vida social (Dreyfus&Rabinow, 1995).
SOBRE O ESTUDO DAS PRÁTICAS SOCIAIS INSCRITAS NO PROCESSO HISTÓRICO
Segundo Foucault, é preciso considerar as práticas sociais que se relacionam com os espaços
públicos não como uma organização centralizada nas mãos dos administradores, mas como uma
rede complexa de relações de força que abrange todo o corpo social. Em O Nascimento da Medicina
Social, Foucault descreve como a medicina moderna surgiu, a partir da socialização de seu objeto, o
corpo. Através de uma multiplicidade de práticas sociais, o corpo passou a ser tratado como força
estatal a ser trabalhada, desenvolvida e aprimorada, e a medicina compõe-se de técnicas específicas
para esse fim. Com o objetivo de assumir o controle da saúde individual e coletiva, diversas práticas
político-administrativas configuraram uma rede de relações de onde a medicina moderna emergiu
como uma estratégia dominante de bio-poder, ou seja, um poder sobre a vida: o mapeamento das
cidades, a homogeneização do poder jurídico, a higienização do espaço urbano e a medicalização
4
das massas foram os elementos que essa estratégia reuniu. Neste caso, por exemplo, Foucault busca
explicar por que a medicina social se desenvolveu em conexão com uma tecnologia para tornar a
vida das cidades mais saudável, ou seja, ele pergunta pelas causas que suscitaram o
desenvolvimento de uma tecnologia médica com um objetivo específico, a partir de um novo o
campo de saber, o salubrismo. Encontra então diversos pontos que tornaram necessário o
mapeamento dos problemas de saúde, tal como eram vistos na época: o medo suscitado pelo caos
urbano, a poluição, o amontoado da população, a precariedade das habitações, o acúmulo de mortos
nos cemitérios e a má circulação do ar e da água pela cidade traziam a necessidade de se organizar o
saneamento da cidade por meio de uma política de higiene pública. Desenvolveu-se então uma
estratégia de poder que visava cuidar da vida, lançando mão de diversas medidas médicas, como a
quarentena e o internamento dos doentes, aliadas com medidas administrativas, como o mapeando a
cidade, a unificação de seu território e a constituição de um corpo jurídico homogêneo, com o
objetivo de controlar a saúde individual – a administração da saúde levou a cabo a socialização do
corpo, a partir da centralização de um campo de saber médico acerca dos indivíduos. Foucault
assinala que, especialmente na Inglaterra, onde o capitalismo estava mais avançado, a medicina
social desenvolveu instrumentos mais voltados para o controle da saúde das classes pobres, pois os
movimentos de massa levantavam uma urgência em promover políticas de controle sobre os
movimentos de revolta popular. A medicina inglesa foi a primeira a desenvolver técnicas de
assistência pública, como forma de exercer um controle mais eficiente sobre os indivíduos, e, ao
mesmo tempo, tornar as classes pobres mais aptas ao trabalho e menos perigosas para as classes
ricas: na Inglaterra, a medicina assistencial, o controle da força de trabalho e o esquadrinhamento da
saúde pública formaram um dispositivo estratégico que buscava responder aos problemas que
envolviam o acúmulo de capital e de poder.
Segundo Beguin (1991), o calor do encortiçamento e do confinamento, as drogas e o álcool,
a vadiagem pela rua, a promiscuidade, o anonimato das lodging-houses (pensões), a preguiça que
elege a sujeira mais do que o esforço compõem as facetas de um “conforto corporal selvagem”, sob
todos os pontos de vista negativos. Avaliavam os estudiosos que o tipo e as condições de vida dos
pobres, levava a um estado de letargia, tornando-os “incapazes de trabalhar e devem, portanto, ser
mantidos pela sociedade”. Inversamente, o “conforto corporal civilizado” visa melhorar as
condições de habitação dos pobres facilitando a satisfação das necessidades corporais “não
proibindo nem reprimindo, mas substituindo um modo de satisfação corporal cujos instrumentos e
efeitos eram incontroláveis, por um bem-estar cujos meios de produção e os efeitos possam ser
controlados e utilizados”. O acesso ao conforto civilizado (casa, água corrente, aquecimento, ruas,
praças e parques equipados e limpos) terá grande poder sobre aquele que os utiliza, ampliando o
sentimento de perda. Os pobres passam a ser mais flexíveis e solidários com políticas defesa da
propriedade e da “qualidade de vida”. As habitações passam por modificações internas e externas
visando atender à nova infra-estrutura. A maquinaria do conforto controla o comportamento privado
e o parque público, enquanto espaço extensivo da casa, dela faz parte para controlar o
comportamento social.
Do salubrismo desenvolve-se a idéia de melhores condições sanitárias associada à presença
de árvores e espaços onde elas pudessem ser plantadas e cultivadas, quando não preservadas
aquelas reconhecidas como as mais velhas. Cuidar de velhas árvores e até ao seu redor praticar
algum tipo de rito é atitude aceita e permitida. Plantar árvores passa a ser uma recomendação de
valorização social e política. Associa-se a presença de árvores à purificação do ar e a criação de
parques públicos ao combate das causas das epidemias. Segundo essa concepção, árvores e parques
tornariam o ar da cidade melhor e proporcionariam maior incidência de luz natural. Da mesma
maneira, passam a ser considerados insalubres as áreas alagadas, úmidas e margens de rios e
córregos, merecendo a ação que, amparada pelo salubrismo, amplamente aceito, promove o
aterramento, a retificação, o represamento, a drenagem, o desvio, o aprofundamento ou
5
assoreamento de canais, a substituição ou até mesmo a supressão da vegetação. Da mesma maneira,
é aceitável a presença de animais domesticados, tais como ovelhas e gansos para pastagem e
manutenção do gramado (Thomas,1996). O salubrismo consolida-se num lento processo de
incorporação de novos hábitos valorizados naquele meio social e cultural.
As necessidades decorrentes do caos urbano criariam as condições políticas para que os
parques fossem projetados como objetos urbanos aos quais se associa a salubridade do ambiente e,
por decorrência, um mecanismo de controle das emoções, através das práticas pré-estabelecidas.
FUNÇÕES DA CIDADE MODERNA
O urbanismo é concebido inicialmente como a arte de embelezar a cidade, evoluindo à
medida que as cidades vão ganhando complexidade com as mudanças decorrentes da Revolução
Industrial, potencializando suas funções originais. Na esteira dos acontecimentos decorrentes da
Primeira Grande Guerra (1914-1918), avanços significativos ocorrem no domínio de técnicas de
concreto armado e de cálculo de resistência de estruturas, de distribuição de ar condicionado, de
separação entre pedestres e automóveis. Além do crescente domínio da técnica construtiva e de
novos materiais, as cidades estão superlotadas.
Com a realização dos CIAM – Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, a partir
de 1928, temas e práticas desenvolvidas pelo pré-urbanismo e pelas diferentes concepções de
urbanismo até aquele momento, procuram encontrar uma resposta à cidade industrial ou
“maquinista” que está se afirmando com o intenso processo de aglomeração populacional,
incorporação de novas tecnologias ao sistema produtivo e proliferação indiscriminada de sistemas
fabris. Converge para os CIAM a massa de pensamento e de propostas arquitetônicas desenvolvidas
em diferentes culturas e ambientes e, em 1933, durante a sua IV edição, em Atenas, formula-se a
Carta de Atenas que consagra as três funções fundamentais da cidade ideal: 1º, habitar; 2º, trabalhar;
3º, recrear-se, nesta ordem. O que determina a definição das funções urbanas “ideais” para a cidade
moderna, está colocado nos trabalhos de Le Corbusier que em 1922, expõe o estudo “Une Ville
contemporaine de 3 Milions d’Habitants”, onde afirma que o “urbanismo de hoje tem em
consideração as condições de habitação, de trabalho, de repouso e de circulação” (Le Corbusier,
1977) e constituindo a Carta de Atenas numa síntese dos seus trabalhos. O problema com a
habitação, especialmente aquela dirigida à massa de trabalhadores que não as têm é perseguido
desde o século XIX e vem obtendo abordagens diversas que oscilam da utopia ao utilitarismo. A
cidade é o local de trabalho produtivo por excelência, e garantir os espaços de circulação de pessoas
e mercadorias é fundamental, assim como o é assegurar a locação das unidades de trabalho e
otimizar as distâncias a serem percorridas. O cumprimento das funções no espaço será viabilizada
através da ocupação do solo, da organização da circulação e da legislação. A recreação ou a
possibilidade de práticas de uso do tempo livre faz parte deste conjunto de valores de conteúdo
utilitarista. Esse tempo, identificado originalmente como “recreação”, ganha novos contornos na
medida em que é reificado, que se identifica com uma atividade que pode ser escolhida e que
assume formas de comportamento mimético (Gebara, 2002). Outrora, se a formação do homem se
dava mais em suas relações com a cidade na dimensão do espaço natural agora, esta massa de tempo
pode ser um elemento de relacionamento com uma estrutura técnica (a cidade e seus espaços
equipados) planejada pela arquitetura moderna para influir igualmente na formação do cidadão e na
sua estrutura simbólica. Não conviu, portanto, na visão consagrada, deixar o uso desse tempo
desconectado da função central: o trabalho.
Os pressupostos estabelecidos pelos CIAM enfatizam o papel do projeto arquitetônico da
habitação em detrimento da unidade histórica em que se constitui a cidade. Desta maneira,
possibilita o utilitarismo das relações com o meio ambiente, agora visto como mera extensão das
funções previstas, para prover o homem de formação, moralidade e higiene.
6
No entendimento de Argan (1998), “a cidade é uma entidade histórica absolutamente
unitária e (...) é o melhor aparato de mediação entre a cultura de classe [e a] cultura de massa (...)
que poderá garantir o caráter intrinsecamente democrático (...) da sociedade e da cultura,
estabelecendo em toda cidade uma circulação cultural uniforme que a torne, realmente, um sistema
de informação”. O que a modernidade tem feito é potencializar esses pressupostos numa “entidade
política que deve transmitir o sentido de seu caráter político, e não [vê] como possa fazê-lo se não
justificar o seu caráter político com seu caráter histórico”.
PARQUES, BEM-ESTAR SOCIAL E ESTRATÉGIAS DE PODER
A história mostra que o Estado, no papel de administrar a vida da população, aumenta seu
poder, fazendo-se presente na implementação desses programas urbanísticos. O que se percebe com
isso é que a racionalidade administrativa que concebe esses programas não é aquela das leis, do
contrato social ou da teologia: é na biotecnologia do corpo social que investe o poder do Estado. De
acordo com Foucault (1988), isto é possível graças às condições históricas que fazem da
multiplicidade das práticas sociais a composição de um efeito de conjunto, onde o Estado passa a
exercer uma função hegemônica, bio-política, ao segregar os espaços, hierarquizar os domínios e
garantir a manutenção do sistema de produção capitalista. São as condições históricas que colocam
para o Estado a preocupação com as questões biológicas, como a sexualidade e a reprodução dos
grupos sociais, a doença e a implementação de programas de saúde, o trabalho e a educação como
forma de produzir mão-de-obra apta, e a dor e as práticas punitivas, pois toda essa complexidade se
inscreve nas práticas de objetivação do corpo individual, ou, como diria Foucault, nas disciplinas do
corpo e nas intervenções de regulação do corpo social. Produz-se assim um dispositivo histórico
complexo, onde a regulação da vida da sociedade parte dos micro-poderes das práticas cotidianas
para configurar estratégias de poder de larga amplitude, dotadas de uma tecnologia voltada para o
bem-estar social e biológico da população. As praças públicas consistiriam em instrumentos para
essa racionalidade administrativa, como espaço de afirmação do seu poder político.
Existem antecedentes neste sentido: durante o Antigo Regime, as praças públicas foram
palco de execuções de criminosos, era o teatro dos suplícios, onde o poder do rei se afirmava pelo
direito de causar a morte ritualizada. Esses espetáculos foram o principal alvo da crítica dos
reformadores do século XVIII: o discurso humanista articulou uma série de elementos na forma
geral da contestação do poder absoluto e na busca de outras formas de punir. Entretanto, nesta
mesma época, o que se desenrolava no nível das práticas ilegais cotidianas era que os crimes contra
a propriedade privada começavam a prevalecer sobre os crimes violentos. Assim, o
desenvolvimento da produção, o conseqüente aumento das riquezas e a valorização da propriedade
criavam a necessidade de métodos mais eficientes de vigilância e policiamento. Estes fatores
combinados levaram a um afinamento das práticas punitivas, com o objetivo de harmonizar os
mecanismos de poder com os instrumentos de controle do corpo social. Tratava-se de estabelecer
uma nova economia do poder de castigar, não mais baseado nos excessos e arrogâncias do poder do
rei, mas que fosse “repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de
maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social” (Foucault, 1997). A reforma do sistema
jurídico foi resultado de uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, em uma nova
política em relação às ilegalidades; no Antigo Regime, havia uma ilegalidade tolerada: privilégio
para alguns, inobservância das ordenações, desusos e reativações súbitas da lei, consentimento mudo
do poder, bem como certas margens de tolerância nas camadas desprivilegiadas. “O jogo recíproco
das ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade” (Foucault, 1997). Desse
modo, a reforma foi também uma reestruturação na economia das ilegalidades, pois o capitalismo
nascente precisava combater as ilegalidades populares, os roubos, e para isso foi preciso estabelecer
sistemas de vigilância constante sobre o corpo social. “Em suma, a reforma penal nasceu no ponto
de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infrapoder das
7
ilegalidades toleradas e conquistadas” (Foucault, 1997). A crítica dos suplícios em praça pública
foi o ponto de união entre os que criticavam o poder do soberano e os que criticavam a ilegalidade
do povo. Em lugar dos rituais através dos quais se restaurava o poder do monarca, foram então
aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a
exclusão dos delinqüentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de assepsia
do corpo social: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos “degenerados”... (Foucault, 2000).
Os jardins e os parques públicos, criações marcantes na urbanização européia a partir do
século XVI, erguem-se sobre a tradição da praça pública – o espaço de domínio público por
excelência - e não negam um envolvimento mitológico e estético com a natureza. A praça ancestral
perde seu caráter de lugar onde a espontaneidade se manifesta e cede lugar ao formalismo e à prática
da linguagem da dominação através dos ritos e objetos associados ao poder. Difunde-se o jardim,
retirado da esfera privada para a esfera pública, como um espaço onde as pessoas vêem outras e
querem ser vistas, obedecendo a regras e formalidades de comportamento (Segawa, 1996).
Os espaços públicos, concebidos na forma de parques urbanos, são destinados inicialmente a
ser áreas de deleite da elite e exibição do poder econômico e político. Também servem para
demonstrar a presença do Estado ao alterarem a paisagem primitiva com remoção de elevações,
drenagem e aterro de áreas alagadiças, substituição de vegetação, retificação de cursos hídricos,
construção de canais, barragens, diques, etc. ou, ainda, serem depositários de objetos integrantes do
patrimônio histórico e abrigarem monumentos, marcos referenciais da identidade local ou nacional.
Passam a representar lugares de maior proximidade com a natureza, mesmo que esta seja percebida
de maneira artificializada ou apenas enquanto cenário para uma situação idealizada. O parque,
agora, como simulacro da natureza, está dotado de novo significado, uma vez que identificado com
o moralmente benéfico e enobrecedor, com a natureza distante e ameaçada (Sarti, 2001).
As associações de conteúdos e significados vai tornando possível um nexo entre aumento do
número de habitantes nas cidades, sensação de pânico sanitário, queda das condições de segurança,
medo que as elites têm da massa pobre e ascensão do Estado legítimo para se fazer presente e de ser
ele próprio produtor do cidadão.
Os parques públicos são criados com a finalidade declarada de atender à necessidade de
espaço livre e de uso público destinado e equipado para o exercício físico e para as práticas que
recondicionem o corpo e a mente para a função do trabalho. São espaços urbanos que contemplam
uma concepção de corpo engendrada pelo capitalismo, como sendo uma “realidade bio-política”,
enquanto força de produção, enquanto força de trabalho (Foucault, 2000). Constituem-se, entretanto,
ainda, em objetos projetados para dar funcionalidade a áreas marginais ao processo de produção e
apropriação do espaço urbano. Cumprem uma finalidade estética prevista e atendem aos interesses
daqueles que controlam os processos políticos de decisão, amortecendo os possíveis impactos das
desigualdades perpetuadas no interior do sistema. Enquanto sistema de informação integrado ao
sistema informacional maior, articulam símbolos e signos construídos ao longo de séculos, distantes
da realidade cotidiana da contemporaneidade. O parque, como modalidade de espaço livre de uso
público, afirma-se como extensão da habitação.
O desenvolvimento das cidades estabelece constante conflito entre a pressão pelo esvaziamento e/ou
regulação dos espaços públicos e, portanto, restrição das possibilidades de socialização e expressão
da diversidade humana, e um movimento contínuo de seus habitantes visando se apropriarem e
definirem novos usos a partir de seus anseios.
A crise do mundo público começa a delinear-se quando os limites entre o sentimento
particular e a demonstração pública perderam sua nitidez. A expressão pública torna-se sinônimo de
representação pessoal expondo a vida privada no campo social; dessa forma, como tentativa de
manter a preservação da privacidade, o silêncio e a passividade passam a ser princípios da ordem
pública. No espaço público esvaziado, significa que estar em público é uma experiência pessoal e
8
passiva; a personalidade torna-se categoria social, a platéia é espectadora, não interfere, somente
testemunha (Sennett, 1988).
O esvaziamento do mundo público está intimamente relacionado com o tipo de crescimento
das cidades, com a transformação dos espaços de expressão pública em espaços de circulação; a
atomização da cidade que instaura os guetos, que represam a igualdade num único espaço,
impedindo a vivência das diferenças, e põem um fim na superposição de funções que criavam
complexidades de experiências e, portanto, sempre novas possibilidades de atuação.
As alterações de significado do urbano enquanto espaço público de vivência da diversidade
encontra suas origens no discurso higienista, que no início do século através de argumentações
tecnicistas, reconfigurou o espaço urbano através de estratégias de controle dos trabalhadores,
transformando os espaços de sociabilidade em circulação, trazendo uma nova configuração da
cidade e do papel de seus habitantes.
Nessa nova cidade onde o espaço se urbaniza, o espaço público deixa de ser
o lugar onde se forja a cultura e se transforma em puro espaço de circulação.
Esse movimento não passa desapercebido às representações, vindas de todos
os campos de saber, que dão corpo às imagens da cidade. Público e privado
são desenhados pelo imaginário como estando drasticamente separados e
passam a definir os novos padrões de conduta na cidade (Pechman, 1994).
A argumentação higienista, que estava baseada em melhorar a produtividade do trabalhador e
em conseqüência do capital, configura uma cidade que separa e compartimentaliza os espaços,
suprimindo a sobreposições de funções que davam vida à cidade, era uma tentativa de gerenciar a
vivência na diversidade humana.
Apesar da relativa vitória higienista em reconfigurar a lógica de ocupação da cidade, esta não
impediu de todo a ação contínua de seus moradores em reconquistar, ou re-criar espaços de
sobrevivência que respondam as suas necessidades objetivas e subjetivas.
Se a valorização do lar frente à rua, a evolução familiar e o mimetismo
sócio-cultural empurram o operário para o interior da casa (Perrot), nunca o
projeto higienista conseguirá esvaziar totalmente a rua das práticas e da
presença popular. Por mais funcionais, por mais que se especializem, os
espaços públicos são eternamente reinvadidos, repossuídos, reinventados,
por aqueles que dele fazem o jogo da vida (Pechman, 1994).
Por esse motivo perde-se a perspectiva de dinâmica da cidade, ou seja, os planejadores a
tomam como algo a ser controlado através de planos predeterminados que independem daqueles que
a ocupam, dos fatores sociais, técnicos, econômicos e culturais que movem seu cotidiano, e a partir
da idealização de um projeto urbanístico travam uma constante luta de adaptação do urbano a uma
lógica concebida estaticamente para a cidade que colide com a produção do espaço dado pelo
contínuo refazer de seus habitantes.
A cidade enquanto organismo vivo é refratária a qualquer atividade
planejada que a congele, ao contrário, o grande desafio do seu planejamento
consiste em incorporar, preditivamente, as possíveis alterações urbanas,
abandonando pretensões de soluções estáveis ou necessariamente corretas. É
necessário operar com a dúvida e a incerteza; esse é o desafio científico da
cidade que se transforma processualmente a partir de impactos ambientais
que sobre ela se deslocam e modificam física, social e culturalmente
(Ferrara, 1993).
9
Assim, se a lógica do salubrismo é investida de uma tentativa permanente de controlar as
emoções e os fazeres, no caso dos parques, vividos no espaço público, cabe instaurar a dúvida sobre
a eficácia de tal conduta.
Interpretar o uso que os cidadãos dão aos espaços públicos pode ser uma alternativa
interessante, que reivindica até mesmo a resignificação dos atos de depredação para além do
preconceito da inadaptação de uma população “inculta” para olha-los como forma de reconstrução
do urbano, como forma de resistência desta população quanto aos seus anseios sobre o mundo
público.
As intervenções urbanas são produzidas na articulação do trinômio meio ambiente, cultura e
historia e são reinterpretadas continuamente assumindo novos usos. A rigidez da regulação dos
espaços públicos produzirá incessantemente o confronto entre o passado, o presente e o futuro.
Incorporar a noção de provisoriedade e movimento, talvez seja um passo importante para pensarmos
o espaço público enquanto possibilidade de afirmação da individualidade1 sobre uma perspectiva da
cidade em movimento.
Para Cranz apud Magnoli (1986), o “movimento americano de parques”, evolui desde
meados do século XIX até o presente, em quatro fases, todas elas utilizando-se dos mesmos
elementos constitutivos da paisagem – água, árvores, flores, caminhos, sebes, esculturas, edificações
– mas em combinações distintas e diferentes predominâncias. Cada uma das fases indica metas
sociais a atingir e formas de reagir aos problemas decorrentes da urbanização. Na etapa 1, de 1850 a
1900, a “pleasure garden”, o parque é a busca de uma aproximação com a natureza, simplificando
seus elementos. Busca uma atmosfera bucólica, lembrando a vida no campo, em silêncio. São vistos
como verdadeiros “pulmões da cidade”. É um lugar para contemplação. Exercícios físicos mais
exigentes ou repetitivos ou que exijam memorização não são estimulados. São proscritos o
alcoolismo, a prostituição e os jogos de azar, assim como outras manifestações da cultura popular
e da moral dos imigrantes. É o lugar onde o comportamento em público para passear e fazer os
piqueniques é controlado pelos protetores da moral e dos bons costumes. A etapa 2, de 1900 a 1930,
a “reform park” ou “play-ground period”, reflete a necessidade de espaços para as atividades mais
próximos às residências e aos locais de trabalho e ganham uma programação que será condicionada
pelos equipamentos – os “play-grounds”. São de pequenas proporções e totalmente ocupados com
caixas de areia para brinquedos e exercícios físicos. Difundem-se informações sobre higiene, saúde,
alguma profissionalização e naturalização americana, ginástica, atividades esportivas, aos diferentes
grupos, idades e sexos. Ainda está presente a discussão entre recreação “ativa”, para participação e
“passiva”, para apreciação. Entre 1930 a 1965, identifica-se a etapa 3, a “recreation facility”,
significando a distribuição da recreação assegurada a todos, em nível nacional, no cotidiano, em
eventos, jornadas, em tal escala que se passa à implantação seriada e multiplicada de estádios,
grandes piscinas, quadras, arquibancadas e painéis de jogos e esportes. É massiva a participação na
recreação considerada ativa que se refina para atender deficientes físicos, idosos, cegos e
aposentados. A padronização se estende por todos os lugares, por toda a nação, em todas as
propostas. A partir de 1965 até agora, define-se a etapa 4, onde a cidade é essencialmente vista
1A distinção entre individualismo e individualidade é importante para compreendermos que tais conceitos referem-se a
projetos de sociedade radicalmente diferentes, pois enquanto o individualismo está centrado numa cultura do consumo
que homogeneíza necessidades e particularidades do sujeito, segundo Heller (1992) “a individualidade humana não é
simplesmente uma singularidade. Todo homem é singular, individual, particular, e ao mesmo tempo, ente humano
genérico (...) O homem torna-se indivíduo na medida que produz a síntese em seu Eu, em que transforma
conscientemente os objetivos e aspirações sociais em objetivos particulares de si mesmo e em que, desse modo
‘socializa’ sua particularidade”. Vale salientar que, para a autora, a busca do humano genérico, que está composto pela
sociabilidade, universalidade, consciência e a liberdade, não elimina a singularidade, pois o homem é ao mesmo tempo
particularidade e generalidade e só pode se constituir em sujeito quando vive simultaneamente estas duas esferas da vida
quotidiana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário